domingo, dezembro 31, 2017

Sobre a desconstrução da memória


Lembro-me de ti todos os dias. Não sei se podia ser diferente… é que esquecer-me de ti seria como esquecer-me de mim próprio. E tu sabes que no fundo, tudo, sobretudo a nossa existência, não é mais do que apenas Memória. A memória das noites frias em que encostavas os teus pés gelados aos meus, dos sonos escarlates e saltitantes, dos grãos de areia e toalhas enrodilhadas, das grutas repletas de estalactites e estalagmites, dos abraços e das mãos perpetuamente entrelaçadas...
Talvez seja isso! Demorou demasiado, mas creio que finalmente compreendi a vastidão hercúlea do meu fracasso. É que hoje, mais do que alguma vez, tenho perfeita noção de que os fragmentos da minha materialidade presente – mas transitória – encontram apenas fundamento nas memórias de uma existência passada que se vai haurindo à medida que os segundos, numa sequência vertiginosa e imparável, perecem uns atrás dos outros. Memórias, seguramente, encobertas ou reconstruídas pelo Véu de Maya. Memórias que não podem, certamente, ser mais do que meras imagens reflexas e quimeras forjadas pela implacável passagem do tempo. Memórias de tal forma metamorfizadas que agora serão, garantidamente, pouco mais do que as substâncias amórficas e plasticizadas da tentativa frustrada de um processo catártico.
Diz-me ao ouvido, por favor, como é que se vive com o reconhecimento do fracasso absoluto? Como conservar o equilíbrio com a certeza de que somos somente o produto fátuo de recordações, de lembranças e de memórias que, aparentemente, nos envolvem como um manto protector, mas que, na verdade, apenas obnubilam a dimensão intrínseca de um desaparecimento gradual e certo? Como admitir que a nossa finitude não é apenas a inevitabilidade de um futuro mais ou menos distante, mas a hodiernidade inconfessável do momento presente? É que, na verdade, sinto-me a desaparecer a uma velocidade tal que quase consigo senti-lo.
É que sabes, apesar de ser pouco mais do que sombra, entre a reconstrução da memória e a agnição do fracasso, consigo ainda vislumbrar reminiscências da matéria de que és feita. Nesses momentos, toda a minha humanidade estremece perante a lembrança da fogosidade da tua pele, da suavidade do teu perfume, da solicitude da tua voz e da perfeição do teu sorriso. Por instantes quase que respiro, apesar da absoluta noção de que te perdi para sempre! Ninguém consegue imaginar a falta que me fazes.