quinta-feira, abril 15, 2010

O ímpio

O olhar ponderoso e fugidio com que arpoava o paulatino desembrulhar dos minutos na pedregosa torre carcomida pelo tempo, causticamente ilustrava a solidariedade ufana com que se atinha com a secreta discussão em seu redor. Enquanto o ponteiro copiosamente balançava entre uma irracional correria para a hora mais próxima e uma vagarosa contemplação de bucólica placidez, mastigava o súrculo agridoce de um cigarro respirando longas e pausadas baforadas de um vermelho enegrecido e violento.
O auditório, de uma plebeia vulgaridade, observava atónito, calado e perdido, a pérfida alegria com que o indivíduo, convictamente, os ignorava. Em uníssono respirava-se dolorosamente enquanto se aguardava um qualquer sinal em que se reconhecesse a existência da colectividade. Esperava-se, quiçá, um milagre!
Talvez não pudessem mesmo esperar qualquer outra coisa que se enquadrasse melhor nesses padrões designados por normais. É que, a opacidade melódica que se lia no fundo esverdeado dos seus olhos era de um infinito aterrador, como se escondessem áugures ou quem sabe apenas mágicos curandeiros, como se albergassem uma sagrada sapiência!
De repente, como se respondesse a uma voz muda mas poderosa, o indivíduo começou a levitar. A multidão olhou-o num misto de êxtase colectivo e cepticismo patológico enquanto ele lentamente subiu até desaparecer. Talvez nunca lá tenha estado!